Paulo Machado da Costa e Silva

1917-2019

Desnecessário dizer que os filhos  de  São  Francisco   marcaram a vida  cristã  de  Petrópolis e irradiaram para além de suas fronteiras.  Minha intenção  nesta contribuição é deter-me na figura de um leigo  franciscano, profundamente marcado  pela forte  personalidade de  Frei Mateus  Hoepers,  frade do  Sagrado  Coração de  Jesus,  que em sua fala  respirava Francisco de    O frade  “padre comissário” da  Ordem  Terceira  Franciscana, Frei Mateus, nas décadas de  40 e 50 do século passado,   animou  a fraternidade  secular, a ordem dos  irmãos  seculares.  Os tempos  eram  outros.  Foram numerosíssimos os   que frequentavam as reuniões  no salão   que  construíram ao lado do  Sagrado, que ficou  conhecido como Casa da Ordem.  No período acima mencionado os terciários eram  uns 250, entre  irmãos e irmãs. Gente da cidade inteira.  Funcionários da prefeitura,  médicos,  mecânicos, empregadas domésticas,  balconistas,  prendas  do lar, pessoas idosas  e jovens com menos de vinte anos.  Menciono  dois  nomes importantes:   Mesquita  Pimentel, escritor e Nelson Sá Earp, médico.   As  lideranças de  Petrópolis se reuniam na Casa da Ordem. Foi nesse  ambiente que   Paulo Machado da Costa e Silva começou sua vida  franciscana.

Não é aqui o lugar de fazer uma biografia exaustiva do “irmão”  Paulo,  do “professor” Paulo.   Viveu muito tempo.   Mais de cem anos.  Nascido de família cristã,  teve vontade de tornar-se  religioso  jesuíta. Esteve  em seminário do  Rio  Grande do Sul. Com a  ajuda de diretores espirituais  compreendeu  que este  não era seu caminho.  Passou a construir sua vida de homem no mundo.  E o fez com garra.

Pai de família extremado, voz mansa, gestos comedidos,  falava com firmeza, pausadamente, não alterava o tom da voz, pessoa respeitada,  sem sede de poder,  homem de labor,  exatidão, justiça, homem   que fez estudos,  formado em Direito,  vereador,  assessor  jurídico da Câmara Municipal de  Petrópolis, professor de português e de história,  dando aulas também à noite,  Herdou ou comprou um colégio sob o nome de  Coração de  Jesus, da conhecida educadora  Professora Hilda Maduro.  Uma vida intensa.   Profundo devoto de Maria.  Um  Um homem valente. Feito de uma mansidão que transparecia em seu olhar e  seus gestos.

Veio o tempo do Vaticano II.  Mudanças, transformações,  vento novo.   Um  pouco antes e durante esse período,   o irmão Paulo começou a se entregar à animação da  OFS  no Brasil,  sempre incentivado por  Frei    Em sua missão de  Ministro  Nacional participou de Congressos  importantes.   Uma virada se anunciava.  Foi  ganhando o respeito dos provinciais ofm, ofmconv, ofmcap, e Tor.  Era preciso renovar.  Sobretudo colocar em destaque  o caráter  laical  dos terciários e inserir a Ordem nos novos tempos.  Ele e Frei Mateus constituíam uma dupla valente neste intento.

Iniciou-se então  uma longo trabalho  de elaboração de um  nova  Regra para os terciários.  Lideranças internacionais  começaram a fazer projetos.  Paulo  Machado fez parte de tais trabalhos.  Revia propostas,  acrescentava e cortava.  Levava o terceiro mundo para as reuniões internacionais.  Era  preciso um documento  vigoroso que pudesse inspirar  a vida de leigos desejosos de seguir o  Evangelho à maneira do Poverello. Paulo tinha o desejo de fazer uma crônica de todos os passos desse    Penso que não chegou a satisfazê-lo.   Rejubilou de alegria quando Paulo  VI em  24 de junho de 1978  aprovou a nova  Regra.  Sempre  que compulso o livrinho amarelo da  Regra lembro-me do professor Paulo.

De maneira muito concisa e feliz a  nova  Regra, bem assimilada é valiosíssimo instrumento na  formação de um laicato maduro,  não saudoso de serem  meio frades e freiras no mundo.  Penso que uma leitura e uma vivência serena da Regra nos leva ao espirito de  Francisco de Assis.  Por vezes penso que muitos de nossos estimados assistentes  e leigos não compreenderam  todo o alcance da Regra,  O leigo franciscano vive no mundo, vai mundo a fora,  sente, porém, uma incontrolável sede do eremitério.  Não se pode descurar desse conúbio entre os dois.  Não podemos vier desfraldando  bandeiras  franciscanas sem  o êxtase diante do Altíssimo e  Bom    A Regra leva a isso.

Depois que a forças foram declinando ele passou  mais tempo Petrópolis,  sem  maiores  Acompanhou  as reuniões do  Conselho OFS  Nacional  na qualidade de assessor  jurídico.  Sua  presença discreta dava segurança  a assistentes e conselheiros. O apartamento em que residia ficava no centro de Petrópolis, o que permitia que ele  participasse ,  quase que diariamente,    da Missa no  Colégio Santa Isabel, das Irmãs  Vicentinas.  Um dos cômodos do apartamento  foi transformado em escritório  com muito livros, coleções de revistas das  Vozes,  documentos da Igreja.  Organizava seu tempo  de tal forma que não ficasse ocioso. Rezava todos  os dias a  Liturgia das  Horas.   Gostava particularmente do Ofício das  Leituras.  Sobre sua mesa sempre um jornal da cidade e outro do Rio.  Algumas vezes eu  o visitava e olhava tudo isso um olhar de alegria.  Durante  seus oitenta e noventa anos dava pareceres jurídicos que lhe eram solicitados.  Queria ter  um ritmo  regular para receber o sacramento da reconciliação.  Na estação de seu envelhecimento destilava sabedoria  e paz.

Quando as forças diminuíram mais acentuadamente foi viver  numa casa de idosos dirigida pelos Irmãos de São João de Deus, no  distrito de Itaipava, bem antes da  Covid    Foi preciso  ‘desfazer-se” de seus  livros, objetos pessoais e  passar a viver num quarto com  apenas  o necessário para viver   dignamente.  Imagino que Paulo deva ter sentido  um aperto no coração ao ver que  um irmão  embalava pedaços de sua vida. Nesse   momento ele era  a pobreza. Seus olhos  já não conseguiam  enxergar  as combinações de consoantes e  vogais que chamamos de   escrita. Sempre bem vestido.  Calça, camisa de mangas  compridas, cabelo penteado, dignidade.  Uma duas vezes administrei-lhe   o  sacramento do  enfermos.

Um homem que concretizava o ideal cristão  do leigo no mundo  com um  coração que vivia a lhe dizer  que  não esquecesse  de ser um    Um contemplativo na ação. Depois de uma última  visita que eu e dois irmãos da Fraternidade de Petrópolis  fizemos ao “professor”  Paulo  retive na lembrança um ser fragilizado,  um gigante de corpo alquebrado, pernas inchadas,  dificuldade para ver e ouvir, todo pronto para um  novo nascimento. Pensei em  Francisco de Assis nu na terra nua.

Nota:

Permitam-me  dizer que  Paulo  foi muito amigo de meu pai  quando  ele fez o serviço militar  no  batalhão de Petrópolis.  O pai era funcionário do Ministério  da Guerra  e servia  na enfermaria. Os dois se  encontravam  nos corredores da caserna.  Quero ainda  dizer  que tive Paulo  como professor de  História da  América em meados dos anos  50  do século  passado.

 Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

 

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