Desnecessário dizer que os filhos de São Francisco marcaram a vida cristã de Petrópolis e irradiaram para além de suas fronteiras. Minha intenção nesta contribuição é deter-me na figura de um leigo franciscano, profundamente marcado pela forte personalidade de Frei Mateus Hoepers, frade do Sagrado Coração de Jesus, que em sua fala respirava Francisco de O frade “padre comissário” da Ordem Terceira Franciscana, Frei Mateus, nas décadas de 40 e 50 do século passado, animou a fraternidade secular, a ordem dos irmãos seculares. Os tempos eram outros. Foram numerosíssimos os que frequentavam as reuniões no salão que construíram ao lado do Sagrado, que ficou conhecido como Casa da Ordem. No período acima mencionado os terciários eram uns 250, entre irmãos e irmãs. Gente da cidade inteira. Funcionários da prefeitura, médicos, mecânicos, empregadas domésticas, balconistas, prendas do lar, pessoas idosas e jovens com menos de vinte anos. Menciono dois nomes importantes: Mesquita Pimentel, escritor e Nelson Sá Earp, médico. As lideranças de Petrópolis se reuniam na Casa da Ordem. Foi nesse ambiente que Paulo Machado da Costa e Silva começou sua vida franciscana.
Não é aqui o lugar de fazer uma biografia exaustiva do “irmão” Paulo, do “professor” Paulo. Viveu muito tempo. Mais de cem anos. Nascido de família cristã, teve vontade de tornar-se religioso jesuíta. Esteve em seminário do Rio Grande do Sul. Com a ajuda de diretores espirituais compreendeu que este não era seu caminho. Passou a construir sua vida de homem no mundo. E o fez com garra.
Pai de família extremado, voz mansa, gestos comedidos, falava com firmeza, pausadamente, não alterava o tom da voz, pessoa respeitada, sem sede de poder, homem de labor, exatidão, justiça, homem que fez estudos, formado em Direito, vereador, assessor jurídico da Câmara Municipal de Petrópolis, professor de português e de história, dando aulas também à noite, Herdou ou comprou um colégio sob o nome de Coração de Jesus, da conhecida educadora Professora Hilda Maduro. Uma vida intensa. Profundo devoto de Maria. Um Um homem valente. Feito de uma mansidão que transparecia em seu olhar e seus gestos.
Veio o tempo do Vaticano II. Mudanças, transformações, vento novo. Um pouco antes e durante esse período, o irmão Paulo começou a se entregar à animação da OFS no Brasil, sempre incentivado por Frei Em sua missão de Ministro Nacional participou de Congressos importantes. Uma virada se anunciava. Foi ganhando o respeito dos provinciais ofm, ofmconv, ofmcap, e Tor. Era preciso renovar. Sobretudo colocar em destaque o caráter laical dos terciários e inserir a Ordem nos novos tempos. Ele e Frei Mateus constituíam uma dupla valente neste intento.
Iniciou-se então uma longo trabalho de elaboração de um nova Regra para os terciários. Lideranças internacionais começaram a fazer projetos. Paulo Machado fez parte de tais trabalhos. Revia propostas, acrescentava e cortava. Levava o terceiro mundo para as reuniões internacionais. Era preciso um documento vigoroso que pudesse inspirar a vida de leigos desejosos de seguir o Evangelho à maneira do Poverello. Paulo tinha o desejo de fazer uma crônica de todos os passos desse Penso que não chegou a satisfazê-lo. Rejubilou de alegria quando Paulo VI em 24 de junho de 1978 aprovou a nova Regra. Sempre que compulso o livrinho amarelo da Regra lembro-me do professor Paulo.
De maneira muito concisa e feliz a nova Regra, bem assimilada é valiosíssimo instrumento na formação de um laicato maduro, não saudoso de serem meio frades e freiras no mundo. Penso que uma leitura e uma vivência serena da Regra nos leva ao espirito de Francisco de Assis. Por vezes penso que muitos de nossos estimados assistentes e leigos não compreenderam todo o alcance da Regra, O leigo franciscano vive no mundo, vai mundo a fora, sente, porém, uma incontrolável sede do eremitério. Não se pode descurar desse conúbio entre os dois. Não podemos vier desfraldando bandeiras franciscanas sem o êxtase diante do Altíssimo e Bom A Regra leva a isso.
Depois que a forças foram declinando ele passou mais tempo Petrópolis, sem maiores Acompanhou as reuniões do Conselho OFS Nacional na qualidade de assessor jurídico. Sua presença discreta dava segurança a assistentes e conselheiros. O apartamento em que residia ficava no centro de Petrópolis, o que permitia que ele participasse , quase que diariamente, da Missa no Colégio Santa Isabel, das Irmãs Vicentinas. Um dos cômodos do apartamento foi transformado em escritório com muito livros, coleções de revistas das Vozes, documentos da Igreja. Organizava seu tempo de tal forma que não ficasse ocioso. Rezava todos os dias a Liturgia das Horas. Gostava particularmente do Ofício das Leituras. Sobre sua mesa sempre um jornal da cidade e outro do Rio. Algumas vezes eu o visitava e olhava tudo isso um olhar de alegria. Durante seus oitenta e noventa anos dava pareceres jurídicos que lhe eram solicitados. Queria ter um ritmo regular para receber o sacramento da reconciliação. Na estação de seu envelhecimento destilava sabedoria e paz.
Quando as forças diminuíram mais acentuadamente foi viver numa casa de idosos dirigida pelos Irmãos de São João de Deus, no distrito de Itaipava, bem antes da Covid Foi preciso ‘desfazer-se” de seus livros, objetos pessoais e passar a viver num quarto com apenas o necessário para viver dignamente. Imagino que Paulo deva ter sentido um aperto no coração ao ver que um irmão embalava pedaços de sua vida. Nesse momento ele era a pobreza. Seus olhos já não conseguiam enxergar as combinações de consoantes e vogais que chamamos de escrita. Sempre bem vestido. Calça, camisa de mangas compridas, cabelo penteado, dignidade. Uma duas vezes administrei-lhe o sacramento do enfermos.
Um homem que concretizava o ideal cristão do leigo no mundo com um coração que vivia a lhe dizer que não esquecesse de ser um Um contemplativo na ação. Depois de uma última visita que eu e dois irmãos da Fraternidade de Petrópolis fizemos ao “professor” Paulo retive na lembrança um ser fragilizado, um gigante de corpo alquebrado, pernas inchadas, dificuldade para ver e ouvir, todo pronto para um novo nascimento. Pensei em Francisco de Assis nu na terra nua.
Nota:
Permitam-me dizer que Paulo foi muito amigo de meu pai quando ele fez o serviço militar no batalhão de Petrópolis. O pai era funcionário do Ministério da Guerra e servia na enfermaria. Os dois se encontravam nos corredores da caserna. Quero ainda dizer que tive Paulo como professor de História da América em meados dos anos 50 do século passado.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM