Por Frei Evaristo Seque Joaquim*
Esta festa é chamada em Grego de Ὕψωσις τοῦ Τιμίου Σταυροῦ e em Latim de Exaltatio Sanctae Crucis (literalmente, “Exaltação da Santa Cruz”). Em algumas partes da Comunhão Anglicana a festa é chamada Santo Dia da Cruz, um nome também utilizado por Luteranos. A celebração é às vezes chamada Festa da Cruz Gloriosa.
Fazemos memória deste dia com a intenção de relembrar a crucificação de Jesus Cristo, evento central da fé, como diz o apóstolo São Paulo: “nós pregamos a Cristo crucificado, que é para os judeus, na verdade, uma pedra de tropeço, e para os gentios uma estultícia; mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus.”
Enquanto a Sexta-Feira Santa é dedicada à paixão e Crucificação, a Festa da Exaltação da Santa Cruz, em 14 de setembro, celebra a cruz como instrumento de salvação, fonte de santidade e símbolo revelador da vitória de Jesus sobre o pecado, a morte e o demônio. Sendo que a cruz foi transformada em vitória do Ressuscitado, Deus transformará também em nossas vidas todas as trevas em luz, todos os medos em confiança e todas as paralisações em nova vida.
Uma fórmula da Igreja siríaca vincula o sinal da cruz à seguinte oração de benção. Em nome do Pai, que me pensou e me formou, e do Filho, que desceu para a minha humanidade, e do Espírito Santo, que volta o direito para o esquerdo.
O cristão não apenas traça a cruz sobre si, ele reza também na postura da cruz. Por isso, o gesto mais antigo da oração cristã é o gesto da cruz, eles bendizem a Deus pelo amor que se revelou na cruz de Jesus. Lembram-se nesse gesto oracional da redenção que aconteceu na cruz. E, ao mesmo tempo, anseiam com isso pela volta de Jesus Cristo.
O sinal-da-cruz se tornou marca cristã na Igreja católica, como na ortodoxa. E se tornou o diferencial. A vida cristã assumiu esse sinal não no seu aspecto visível, físico, mas espiritual, teologal. Entre os estudiosos acredita-se que o sinal-da-cruz surge aos poucos articulando a realidade da cruz, em um processo de aculturação com a linguagem e gestos de antigos costumes religiosos, embora diferenciando-se deles pelo sentido espiritual específico que se lhes atribuía. A marca física sphragis gravada com fogo passa a ser um sinal puramente divino marcado, como está escrito em Ap 7,3, “fronte dos servos do nosso Deus”. São Cirilo de Jerusalém (+348 d.C.) escreveu: “O sacerdote o marcou na fronte com a sphragis, a fim de que, recebendo esse sinal, você seja consagrado a Deus”.
Isso serviu de base para que os cristãos assumissem no culto e na vida de todos os dias o gesto do sinal-da-cruz.
Tertuliano (155 d. C.) vai afirmar que os pagãos viam os cristãos como devotos da cruz e escreveu: “Não há nenhuma lei formal das Escrituras que imponha essas diversas práticas; mas a tradição as ensina, o costume as confirma, e a fé as observa.” Essa afirmação de Tertuliano teria, ao que parece, inspirado-se na passagem do Apocalipse e em Ez 9,4 sobre a marca de Deus a ser feita nas frontes humanas. Essa marca seria a letra hebraica Tav (T), símbolo do nome de Deus, e que o alfabeto antigo tinha a forma de cruz de quatro pontas; de certa forma, ela foi reincorporada na gramática cristã pela letra Tau do alfabeto grego. Aliás, o próprio Tertuliano e Orígenes falarão do uso do Tau como forma de cruz traçada pelos cristãos na fronte.
O Tau pode ser associado a duas figuras bíblicas: A serpente de bronze (Nm 21, 4-9 e Jo 3,14) e segundo Moisés rezando na montanha de braços abertos, enquanto Josué (Ieshuá/Jesus) combatia e ia vencendo os amalecitas (Ex 17, 8-13), segundo os santos padres. Tertuliano: “Enquanto Josué combatia Amalec, Moisés rezava sentado contra o demônio, a forma da cruz era necessária; a cruz pela qual Jesus (Ieshua/Josué) ia conquistar a vitória”. Cipriano: “Por esse sinal-da-cruz, Amalec foi vencido por Jesus (Ieshuá/ Josué) graças a Moisés”. Justino: “O povo (hebreu) não levou vantagem porque Moisés se pôs a rezar. Mas sim porque representava o sinal-da-cruz”.
Ainda pelos escritos antigos vemos que o sinal da cruz era feito em muitas circunstâncias e momentos. Clemente de Alexandria, Tertuliano e São Cirilo de Jerusalém:
“Não tenhamos vergonha de confessar o crucificado. Façamos o sinal da cruz com determinação em nossa fronte, com nossos dedos, e em todas as circunstâncias (…) quando se come o pão e se bebe algo, ao entrar e ao sair de algum lugar, antes de dormir e ao acordar…”.
Documentos do mundo pagão identificam os cristãos por esse gesto, feito na fronte: os mártires no instante derradeiro, os soldados cristãos antes dos combates. Temos um caso da Igreja da África, do ano de 295. Maximiliano, um cristão, que foi martirizado porque se negou a receber o signaculum – sinal do imperador. Ele afirmou:
“Não posso aceitar nem portar esse sinal, pois já tenho o sinal de Cristo, meu Senhor”.
Ele, na certa se referia ao sinal recebido no batismo e foi com essa marca que se encaminhou para o martírio.
Mas não era só na fronte que se fazia o sinal da cruz. São Cipriano nos diz que ele deve ser feito também nos ouvidos, para não se ouvir palavras carregadas de morte, nos olhos, para ser livres das imagens que nos afastam de Deus.
Do gesto de fazer o sinal da cruz com o dedo passou-se ao gesto de fazer com a mão no ar. Traçado sobre coisas ou simplesmente abençoando as pessoas. Como começou não se sabe ao certo. Santo Epifânio relata um caso em que o gesto foi feito sobre uma ânfora que possivelmente serviria ao culto. Outros casos também são relatados nos séc. III e IV.
A primeira forma desse gesto é praticada ainda hoje pelos cristãos ortodoxos: juntam-se 03 dedos – o polegar, o indicado e o médio; fecham-se os dois restantes – o anular e o mindinho e então faz o sinal-da-cruz começando pela fronte, indo em seguida ao coração (peito) depois ao ombro direito e, finalmente, ao esquerdo.
O sinal em nome da Trindade vai aparecer na lição catequética atribuída a Santo Ambrósio, era, sobretudo, nas grandes celebrações da fé que os cristãos se serviam desse sinal. Santo Agostinho nos diz: “É pelo sinal da cruz que se consagra o corpo do Senhor, que as fontes batismais são santificadas, que os padres e outros clérigos são iniciados no ministério; enfim, tudo o que deve ser santificado é consagrado por esse sinal-da-cruz do Senhor junto com a invocação do nome do Cristo.”
Traçar o sinal da cruz grande, com a mão inteira desde a testa até o ventre e depois desde o ombro esquerdo ao direito. Com isso expressamos que, sendo seres humanos, existimos em forma de cruz. Cristo pode manter juntos opostos da nossa existência humana. A testa representa o pensamento; o ventre, a vitalidade e sexualidade, o ombro esquerdo, o inconsciente, e o direito o consciente. No âmbito da simbologia, o esquerdo representa também o feminino e o direito, o masculino. O coração fica à esquerda. O lado direito representa a atuação.
Na espiritualidade franciscana, a cruz, além de São Francisco, ganhou destaque no grande teólogo e místico, São Boaventura. Além de relatar as experiências místicas de Francisco (estigmas e cruz), foi ele que distinguiu a diferença entre a Paixão (sensibilidade) e compaixão (espiritualmente). Afirmou que Jesus sofreu mais a dor da Compaixão do que a da Paixão. Outros franciscanos se destacam: Santo Antônio, São Bernardino de Senna, o “cantor da Paixão”, São Pedro Claver, Beato Duns Scotto e no séc. XIII São Leonardo do Porto Maurício, o criador da Via Sacra (que chamou de “estrada régia do Paraíso”). A base era a Paixão afetiva – o amor presente.
Não tornar inútil a cruz de Cristo. Torna-se inútil a cruz de Cristo quando se ignora na Paixão de Cristo a mensagem principal de Pai: o amor. Assim sendo não se retribui, não se responsabiliza; Quando não se acolhe a fragilidade humana como espaço para Deus manifestar a sua força. Dessa forma busca-se um Cristo sem cruz, um seguimento sem renúncias, ignora-se a cruz de cada dia que deve ser abraçada; Quando se torna cruz para o outro, oprimindo, julgando, condenando, destruindo, compactuando com o sistema injusto de morte; Quando não se traz para a realidade concreta a mensagem do Crucificado, permanecendo Crucificado com ele, sendo sinal de serviço, doação, solidariedade, misericórdia, ternura, perdão, amor…
Precisamos fazer a distinção entre a cruz e o Crucificado. A cruz em si não é salvadora, não é ideal de vida, mas o Jesus que a abraçou, o Jesus da cruz. A cruz destrói, na cruz Jesus de Nazaré foi destruído. A cruz deve ser combatida. Porém, a forma que Jesus encontrou para combatê-la foi assumi-la, Jesus entrou na cruz, para que nós não tenhamos que entrar nela.A cruz não foi buscada por Jesus, como se fora realização da sua vida ou personalidade. Ela entra como caminho do seu compromisso com a humanidade sofredora. A vida de Jesus foi um combate, uma luta, do nascimento à morte, para destruir o poder maligno da cruz e Ele morreu combatendo, com a sabedoria de Deus.
A cruz tornou-se, então, um estilo de compromisso e, assim sendo, somos convidados a seguir Jesus, tomando a cruz, como ele mesmo fez; abraçando-a não porque ela é um valor, mas porque rompe sua lógica de violência pelo amor. Tomar a cruz é ser maior que ela, por isso devo tomar a cruz para vencê-la, como programa de vida, senão podemos ser vencidos pela cruz.
Pregar essa cruz, hoje, é pregar o seguimento de Jesus. E seguir Jesus é per-seguir seu caminho, pro-seguir sua causa e con-seguir sua vitória.
* Frei Evaristo Seque Joaquim é natural de Lobito (Angola), nasceu no dia 12 de janeiro de 1994. Vestiu o hábito franciscano no dia 15 de janeiro de 2016 e fez sua primeira profissão no dia 05 de janeiro de 2017 em Rodeio (SC). Atualmente, Frei Evaristo cursa o 1º ano de Teologia no Instituto Teológico Franciscano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Wikipédia, a enciclopédia livre.
BOFF, Leonardo. A Cruz nossa de cada dia”. Campinas, Versus, 2003.
CANTALAMESSA, Raniero. “O poder da Cruz”. São Paulo, Loyola, 1996.
PEREIRA, José Carlos. ” A eficácia do sacrifício”. São Paulo, Editora Arte e Ciência, 2001.
MOLTMANN, Jurgen. “El Dios Crucificado”. Espanha, Salamanca 2010.
V.V.A.A. A Cruz – teologia e espiritualidade”. São Paulo, Paulinas, 1983.
LAIN, Pedro. “O poder do escândalo”. São Paulo, Loyola, 1982.
GRUNN, Anselmo. “A Cruz”. São Paulo, Paulus, 2009.